domingo, 18 de julho de 2010

4 Notas sobre David de Souza por José Pires Lopes de Azevedo (1923-2007) (professor, escritor)

II – Passos na vida de David de Souza (1)

Rua do Príncipe Real, ali “no aterro do cais novo”, segundo esclarecia o Almanaque da Praia da Figueira para o ano de 1878-79, hoje Rua da República; e Rua Bernardo Lopes, aqui no Bairro Novo: eis os limites geográficos da breve linha dos 38 anos da vida de David de Souza, que no primeiro nasceu, a 6 de Maio de 1880 e no segundo morreu, a 3 de Outubro de 1918. E, não obstante a proximidade espacial entre semelhantes extremos, bem errados andaríamos se nos aventurássemos a supor que a existência do músico artista se cumprira num tão escasso trajecto.

Nado e baptizado na Figueira da Foz a 23 de Maio de 1880 (figueirense como sua mãe, D. Maria Leonor Marques de Figueiredo, aqui casada quase 3 anos antes com Mariano Augusto dos Reis Souza, negociante oriundo de Alvor, lá do reino dos Algarves), cedo com a família David de Souza fixa residência em Lisboa, onde aos 9 anos se inicia no canto e na teoria da musical por mão do Mestre de Capela da Sé Patriarcal Augusto José de Carvalho.
Depois de diplomado e distinguido pelo Conservatório Real, onde entrara em 1895-96, parte para Leipzig em 1904, como pensionista do Estado, para se aperfeiçoar na sua arte, processo que se conclui a 10 de Abril de 1908, quando faz o seu 10º e último exame no Real Conservatório de Música de Leipzig, em provas públicas para director de orquestra e compositor.

Entretanto, não se limita a passar esses 4 anos na Alemanha, nem por lá permanece todos os que se lhe seguem, até regressar a Portugal. Assim, o seu primeiro concerto parece ter sido em Setembro de 1906 em Inglaterra (Cheltenham), onde volta no Outono imediato: desse tempo vi programas pelo menos de Bridlington, Hull e Leeds. Entrementes, a 8 de Março de 1907, adquire composições musicais em Moscovo. E depois, na época Primavera / Verão de 1908, após o êxito das suas provas finais em Leipzig, tenta a sorte musical em Londres, onde pretendia continuar, apurando-se e porventura, fazer um doutoramento.

A seguir, entre fins de 1908 e 1909 e sem nunca perder contacto com Leipzig, actuando só ou integrado em orquestra, viaja por Inglaterra. Em 1909, concertos em Horrogate e outra vez em Bridlington, na Áustria e na Rússia. Um dos borrões da ”Rapsódia Eslava” tem data de Ekaterinoslaw – 18 de Dezembro de 1908.

Dos seus passos entre 1911 e 1913, pouco alcancei: em Janeiro, Fevereiro e Maio de 1911, adquire partituras em Londres; um esboço de uma composição a que não deu nome, data-o novamente em Ekaterinoslaw a 2 de Janeiro de 1913; e em Março do mesmo ano compra músicas em Leipzig.

Se ao que fica dito se juntar uma ou outra fugaz vinda a Portugal para matar saudades da mãe, de quem sempre se mostrou filho extremoso ou para rever amigos e, quiçá, pugnar pelos seus direitos de bolseiro, contra oficiais do mesmo ofício e seus adversários activos, obviamente há-de concluir-se que, entre 1904 e 1913, a linha de existência de David de Souza foi cheia de sinuosidades, repartida por “franças e araganças” de grande parte da Europa.

Entretanto, a partir da segunda metade de 1913, é em Portugal que vem tentar a sua sorte, embora ainda a partir de aí se não feche para essa mesma Europa. Assim por exemplo, datado de 21 de Julho de 1913 e válido por um ano, o nosso cônsul-geral em Londres concede a David de Souza passaporte para a Rússia; e na verdade é que na “Musette”, esboço de uma composição própria, encontramos data de Agosto de 1913 e, sempre, de Ekaterinoslaw. Depois, na segunda quinzena de Setembro imediato, com duas horas de espera de ligações ferroviárias – de onde e para onde? – aproveita para de Paris, escrever um postalinho a sua mãe. Enfim, sabe-se que volta a actuar em Londres, ao menos em dois momentos mais: em 1914 e em 1917.

De qualquer modo, a partir daquele ano de 1913 assenta arraiais em Lisboa. Assim, depois do concerto de apresentação como violoncelista no Conservatório, realizado a 16 de Junho, e após uma curta digressão na província – o seu primeiro concerto público em Portugal dá-o aqui na Figueira, a 29 de Setembro – inicia a sua actividade como director de orquestra no Teatro Politeama no dia 7 de Dezembro, aí se mantendo em actividade em todas as épocas seguintes, com o último espectáculo a 3 de Maio de 1918. Além disso, a partir do ano lectivo de 1915-16, é também professor no Conservatório.

Entrementes, à província volta, por mais do que uma vez: Coimbra, Faro, Porto, Setúbal e Tavira, por exemplo, figuram no seu roteiro musical de então; e no Alentejo ou no Algarve, nas Beiras ou no Minho, recolhe apontamentos de música popular.

Naturalmente, a Figueira surge contemplada nessas digressões. A 24 de Setembro de 1914, por exemplo, uma carta informa-nos de que David de Souza então se acha instalado na Rua Bernardo Lopes, 66; e que, embora aborrecido pelo adiamento de um concerto projectado, ao amigo a quem escreve conta que “Tem chovido imenso, mas hoje está um dia lindíssimo”. E, a 11 de Setembro de 1917 no Grande Casino Peninsular, rege um concerto a favor da Assistência da Figueira às vítimas da guerra.

E é precisamente essa 1º Guerra Mundial que, á distância, vai matar ainda mais uns milhares de almas, até mesmo em Portugal. Não antecipemos porém.

A 19 de Agosto de 1918, em postal de Lisboa ao violinista Paulo Manso, conterrâneo e amigo, anuncia para o dia imediato a sua vinda para a Figueira, no comboio da noite, contando instalar-se no Hotel Mondego, que ficava entre a Rua 11 de Setembro e o cais, sensivelmente por esse lado fechando o actual Largo do Carvão. Mas, em Setembro imediato escrevendo a outro amigo, Alexandre Ferreira, sobre discussões em torno do contrato com o Politeama para a época de concertos que se avizinhava, já dá por morada o prédio nº 29 da Rua do Viso, aqui perto de mim, no Bairro Novo.

Entre a data da última carta referida – 20 de Setembro – e a da morte, tão próxima – 3 de Outubro – que voltas mais terá dado o artista? Terá ainda ido a Lisboa tratar pessoalmente com Luís António Pereira, o empresário, que o “intimara” a começar ensaios para a nova época do Politeama às 5 da tarde do último dia desse mês de Setembro? E por que se terá mudado da Rua do Viso para a casa onde veio a falecer, tão vizinhas uma da outra? Quem saberá?


(1) O presente texto, agora corrigido, foi publicado em primeira versão no semanário figueirense “O Dever”, em 16 de Janeiro de 1981.

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