domingo, 18 de julho de 2010

4 Notas sobre David de Souza por José Pires Lopes de Azevedo (1923-2007) (professor, escritor)

IV – David de Souza, compositor (1)

Consultando o espólio de David de Souza, existente no Museu Municipal, notei cerca de meia centena de datas, em outras tantas composições completas ou simples apontamentos.

Anteriores a Leipzig (1904-1908), apenas dois textos, assim mesmo com interesse: uma recolha apontada de uma Modinha de Leiria, Alfeizerão e arredores (8-V-1898) e a valsa “Um beijo na praia”, enviada em 1904 à redacção da Gazeta da Figueira, para publicação que, segundo creio, não aconteceu.

Afiguram-se-me importantes ambas as composições, porque, se a valsa reflecte os gostos do tempo, o fundo afectivo do artista e a sua memória pela terra mãe, já o primeiro esboço faz pressentir a tendência do futuro compositor para o folclore, depois abundantemente confirmada.

Os 9 anos passados fora do país (1904-1913), estão assinalados por cerca de duas dúzias de textos datados. Pela correspondência da época, sabemos que David de Souza na luta por sobreviver, não se limitava a acções como aluno, compositor, violoncelista e regente de orquestra. Em busca de alguns proventos, construía música que ia vendendo a editores nacionais e estrangeiros. Por isso, na sua obra de então, o próprio artista distingue dois níveis: um, esforçado e sério, que ele se atrevia a submeter à apreciação de mestres e do público conhecedor; e outro, mais ao gosto das camadas pseudo-cultas.

Neste último lote inicia David de Souza “as primeiras valsas portuguesas tocadas nos salões ingleses”. No primeiro conjunto, incluía o artista obras para canto, piano, violoncelo e orquestra: barcarolas, mazurkas (há uma explicitamente dedicada ao seu mestre Julius Klengel), melodias, poemas sinfónicos, rapsódias, tarantelas, etc. Para esses trabalhos de maior fôlego, buscava David de Souza o parecer de mestres que o estimulavam, corrigiam e, às vezes, até editor lhe arranjavam.

É entre tais composições que havemos de contar a “Rapsódia Eslava”, talvez de entre 1908 e 1910, que, inspirada no folclore russo, alcançou sucesso desde a primeira audição, supomos que em 1910, na cidadezinha de Ekaterinoslaw (2); assim como outras obras, certamente de maior conteúdo psicológico: uma “Canção de Outono” (20-VIII-1906); umas “Danças portuguesas” (8-VII-1907); o poemeto sinfónico para grande orquestra “Ignez”, poema inspirado no mais alto episódio lírico-trágico de “Os Lusíadas” (op. 16, concluído em Leipzig a 3-VIII-1907 “ás doze da noite” e pela primeira vez parece que tocado em Berlim a 4 do mês imediato); um “Pranto” (2-IV-1908); uma “Suite Lírica” para grande orquestra (24-VII-1909), com primeira audição na cidade inglesa de Harrogate, na noite de 6 de Setembro do mesmo ano (3); uma “Canção de embalar” (IV-1908), que exibe esta apaixonada dedicatória: “Á minha adorada mãe” (4); ou a muito justamente célebre “Saudade”, de extensão breve, mas de claro e fundo sentimento (5).

Regressado à pátria e com menos de 5 anos para viver (1913-1918), comprometido com os célebres e polémicos concertos do Politeama e outros que no país e fora dele ia realizando, David de Souza empenhou-se num intenso trabalho de composição (há, dessa data, uma trintena de textos, a par com outros mais, da mesma época mas sem datação), quer em arranjos para orquestra de obras de outros compositores, quer em recolhas do folclore português, quer em inéditos próprios. Esse foi um tempo de lavor apaixonado, próprio do temperamento sentimental-activo que era o de David de Souza, comprovado pela sua correspondência, pelos seus comentários e atitudes, assim como pelos motivos inspiradores da sua obra.

Na série de orquestrações de obras de outros compositores, incluem-se trabalhos sobre autores de várias nacionalidades e vários séculos: Couperin, Buonacini, Galuppi, Gossec, Fischer, Mozart, Beethoven, César Franck, Grieg, etc.

Da simples observação das dúzias de apontamentos folclóricos, ressaltam como províncias mais inspiradoras o seu paterno Algarve, com relevo para Monchique, o Alentejo e as Beiras. Como seria interessante um estudo só neste domínio! Apenas um exemplo, a ilustrar: em apontamento de “A machadinha”, título primeiro, depois riscado e substituído pelo de “A monda”, David de Souza lança a nota seguinte: “pedir letra a Fernando Tomaz”. Ora, que relações haveria entre o compositor e o primeiro grande etnógrafo figueirense, e que reflexo terão tido elas nas respectivas obras?...

No campo da produção própria, sobre folclore ou não, entre as obras datadas figuram, além de outras: um “Hino patriótico” (26-III-1916), sobre letra de Silva Passos; uns “Cantares Portugueses” nº 2 (13-III-1917) (6); um “Derradeiro Adeus” (estados d’alma), (VII-1917); uma “Elegia” (4-VII-1918), inspirada na romântica exclamação “Ó minha mocidade / como eu te choro!”; um apontamento intitulado “Figueira” (19-IX-1917), sobre letra muito breve que principia com o verso: “Eis as sete freguesias”, para terminar desta arte: “em Alhadas e Tavarede / sou Quiaios e em Maiorca / sou Paião e fui na rede”; e ainda o poema sinfónico “Babilónia” (4-XI-1917), inspirado na morte de D. João, de Guerra Junqueiro.

No frontispício desta obra maior, há o seguinte comentário, vibrante como é próprio do ânimo do compositor:

“Contigo oh minha peça querida nasceram-me alguns cabelos brancos.
Não te perceberam (…) os meus inimigos!
Se vales, ficas, és o meu pedestal! Se não vales, serás o meu pelourinho!
Lisboa, 24-XI-1917. David de Souza


(1) Texto escrito em Outubro de 1980 e agora corrigido.

(2) A cidade, depois chamada Dnepropetrovsk, situa-se no coração da Ucrânia, sobre a margem direita do Dniepre, mas a mais de 3 centenas de quilómetros da Foz, no Mar Negro.

(3) Em Moscovo, ante algumas telas do Museu de Pintura, à memória de David de Souza vieram cenas da sua própria infância. Nelas inspirado, compôs a “Suite Lírica” em 4 quadros: “Velho conto aldeão” / “de volta ao redil” / “Última primavera” / “Dança aldeã”. Esta peça, apresentada com êxito em Inglaterra e na Rússia, parece haver tido a sua primeira audição em Portugal no concerto do Politeama de 15 de Março de 1914.

(4) Será esta a mesma “Berceuse” apresentada em Portugal pela primeira vez no concerto / prova de 16 de Junho de 1913, no Conservatório de Lisboa, e depois repetida, a 29 de Setembro seguinte, na festa do Ginásio Figueirense?

(5) Este belo trecho incluiu-o David de Souza na sua festa artística de 7 de Fevereiro de 1915, no Politeama. Entretanto, quando terá sido ouvida pela primeira vez? O que porém parece certo é que esta “Saudade” portuguesíssima, com a “Rapsódia Eslava”, a “Suite Lírica”, os “Cantares Portugueses” e a “Berceuse”, são os textos de David de Souza até hoje mais apresentados em público.

(6) Sobre uns outros “Cantares Portugueses” em primeira audição apresentados no Politeama a 28 de Janeiro de 1917, deixou David de Souza a seguinte nota: “Apenas uma ideia me acompanhou na composição desta peça: dar a conhecer aos meus compatriotas algumas das nossas canções que julgo desconhecidas em Lisboa. Trecho sem artifícios nem pretensões orquestrais em que somente há um pouco da alma portuguesa”. Lisboa, 23-I-1917. Terá o seu êxito sido tal, que determinaria ao artista compor outra obra com o mesmo nome, num lapso de tempo inferior a 2 meses?

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